Uma prova de que a paisagem tem memória

OESP, Vida, p. A14 - 02/03/2006
Uma prova de que a paisagem tem memória

Marcos Sá Correa

Dos 11 passeios recomendados no folheto que todo visitante recebe na portaria do Parque Nacional do Itatiaia, dois ficam no sítio Jangada. São particulares, embora não pareçam, a cachoeira Poranga, que em tupi quer dizer "beleza", e a Véu de Noiva, onde uma queda com 40 metros de altura "forma um dos cartões-postais" de uma unidade de conservação que, teoricamente, pertence ao patrimônio nacional.
Pena que o texto não explique que elas estão ali não só por força da natureza, mas por obra e graça do proprietário, que conservou como área pública, sem prédios nem cercas, a maior parte dos 500 mil metros quadrados de seu terreno. Era o engenheiro Hélio de Almeida, que foi ministro da Viação no governo João Goulart e em 2002 teve suas cinzas lançadas ao pé de uma araucária, na sede do parque. Ele é um exemplo de que ali a paisagem tem memória.
Um pianista e sua pensão
Memória feita por gente como o pianista Robert Donati, que deixou a Alemanha na 1ª Guerra Mundial, fundou uma casa de instrumentos musicais no Rio e em 1928 foi passar férias na região. Não bastou a Donati se hospedar na pensão dos Walther. Donati comprou a gleba colonial, construiu um hotel e em 1931 inaugurou uma lenda, seis anos antes que o governo fizesse a seu redor o primeiro parque nacional do Brasil.
"Ele nos saudou num inglês sem o menor sotaque. Na verdade, era capaz de manter conversa em quatro ou cinco línguas ao mesmo tempo, com a desenvoltura de um esquiador profissional", contam os botânicos americanos Racine e Mulford Foster, que vieram ao Brasil na década de 1940 em busca de orquídeas e bromélias. Donati os recepcionou "de calções alpinos e botas" numa "Floresta Negra em miniatura", plantada nos trópicos.
Ele tinha um fraco por pinheiros exóticos. Mas foi a primeira pessoa a plantar árvores numa serra onde a civilização brasileira se limitara a cortá-las, desde que aquilo era fazenda do Barão de Mauá.
"Lindas árvores", por sinal, atestou o poeta Vinicius de Moraes, que de 1932 a 1936 passou temporadas intermináveis no pequeno hotel de Donati. Suas cartas, escritas no caramanchão do jardim, falam muito desse "alemão cosmopolita", com "primeiro nome inglês, sobrenome italiano e pronúncia francesa", que "morou muito tempo na Inglaterra, conhece toda a Europa e se considera brasileiro". Naqueles ermos, Vinicius havia encontrado uma discoteca que era "uma maravilha".
Mais tarde moraria em Itatiaia, a convite de Donati, o pintor Alberto da Veiga Guignard, curando-se de uma crise sentimental. Até os anos 70, a luz elétrica brilhava poucas horas por dia no hotel e banho quente se reservava com antecedência.
O cenário que Guignard pintou já não existe. Era pasto quase nu, herança da fazenda Mont-Serrat, onde o filho do Barão de Mauá produziu carvão vegetal até vendê-la para o governo em 1908. Mas nos 250 mil metros quadrados de Donati, o mato foi aos poucos tapando os chalés. Acabou a vista da sala de refeições para o Vale do Paraíba. E só quem conhece muito bem o lugar enxerga suas instalações do alto dos picos vizinhos.
Bloco unido
Tudo isso vem ao caso porque o Ibama retomou no fim do ano passado a conversa da regularização fundiária, antes que o parque, no ano que vem, complete 70 anos sem que o governo controle dois terços de suas terras.
Do outro lado, alinhou-se automaticamente contra as desapropriações tudo o que o tempo laboriosamente separara. Proprietários legítimos e grileiros, donos de sítios em permanente expansão imobiliária e de ruínas que a floresta engoliu há décadas, antigos benfeitores do parque e seus mais recentes beneficiários formaram de repente um bloco indivisível. É o tradicional bloco dos unidos dos direitos adquiridos.

Marcos Sá Correa, Jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

OESP, Vida, 02/03/2006, p. A14
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