Quem vê cuida

Veja, Tecnologia, p. 94-99 - 26/11/2014
Quem vê cuida
Ao mapear Fernando de Noronha, inclusive no fundo do mar, o Google expande para o Brasil seu ambicioso projeto de mostrar a todos tudo o que há na Terra. De quebra, ainda forma um banco de dados decisivo para a conservação do arquipélago brasileiro

Raquel Beer

O Brasil concentra a mais rica biodiversidade do planeta, e o arquipélago pernambucano de Fernando de Noronha é um dos maiores símbolos da variedade e da beleza de nossa flora e fauna. Mas são poucos os que têm contato com essa porção do país. Noronha recebe apenas 250 visitantes por dia, sob estrito controle ambiental. Como não é permitido construir novas pousadas, os quartos que existem são caríssimos. "Limitar o acesso traz um evidente aspecto positivo para a preservação", afirma o engenheiro florestal Ricardo Araújo, chefe do Parque Nacional de Fernando de Noronha. "Mas fica difícil convencer quem não vê a rica natureza de que é necessário conservá-la."

Está aí a principal motivação da parceria firmada entre o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável por administrar os parques nacionais, e o Google para criar uma versão on-line da ilha no popular serviço Street View. Por uma semana, VEJA acompanhou o trabalho da equipe do Google ao registrar cada pedacinho de Noronha e, em um feito extraordinário, também vastas regiões submarinas. As imagens em 360 graus construirão um mapa digital acessível a todos a partir do início do ano que vem. Então, qualquer um poderá ver, compreender e cuidar da bela biodiversidade de Noronha.

O Google criou dois braços de seu site Street View para a digitalização de reservas e parques naturais: o Parks (que abrange áreas continentais) e o Oceans (de submarinas). Com Noronha e o Atol das Rocas (reserva ecológica nas proximidades do arquipélago), já são treze as regiões do tipo gravadas por suas câmeras. Na lista há, por exemplo, Galápagos, no Equador, e a ameaçadíssima Grande Barreira de Corais da Austrália. No Brasil, a empresa pretende expandir o mapeamento para todos os parques nacionais, inclusive na Amazônia. O projeto de Noronha é pioneiro em três aspectos. Além de ser o primeiro território brasileiro da lista, nunca foi feito um mapa subaquático do arquipélago e também é a primeira vez que o Google usa bugues (a única forma de trafegar por parte do terreno).
Noronha é, hoje, um ambiente bem protegido, sobretudo para os pobres padrões brasileiros de conservação - que levaram ao vergonhoso aumento do desmatamento na Amazônia entre 2012 e 2014. Só que por dois séculos sofreu com a destrutiva mão humana. Primeiro, ao abrigar uma prisão; depois, serviu de base para os Estados Unidos na II Guerra Mundial e durante a Guerra Fria. Por todo esse período, nem a pesca nem o desmatamento eram regulados. Só em 1988, depois do fim da ditadura, Noronha foi tirada do gerenciamento de militares e virou um parque nacional. De lá para cá, projetos ecológicos recuperaram, com resultados louváveis, a flora e a fauna, que inclui espécies endêmicas, como o passarinho juruviara-de-noronha, e ameaçadas, a exemplo do tubarão-limão.

Nas últimas décadas, porém, os esforços conservacionistas esbarraram em uma limitação técnica. Pelos anos de descaso, ainda é falho o acompanhamento da evolução da fauna, principalmente a marinha. Órgãos ambientais não têm acervos de fotos e vídeos que mostrem a evolução do ecossistema subaquático de Noronha ao longo dos anos. Os registros mais ricos que existem vêm de imagens feitas por mergulhadores recreativos, que nem foram organizadas, e de parcos documentários gravados por emissoras de TV.

Não se sabe ao certo quais espécies marinhas estão ameaçadas no arquipélago. Mesmo com a rígida proteção atual, os animais continuam em risco por questões que muitas vezes fogem do controle da fiscalização local. Um exemplo são as mudanças climáticas que inegavelmente afetam o planeta e ameaçam a sobrevivência dos quinze tipos de coral da região e, logo, a manutenção de todo o ecossistema, dependente deles. "Nossas gravações servirão como base não só para ver Noronha hoje, mas também para acompanhar como as ilhas estarão em dez, vinte, trinta anos", diz o engenheiro gaúcho Tomas Nora, responsável pelas operações do Google Maps na América Latina. "Assim, veremos se a população de espécies do arquipélago aumentou ou diminuiu, o que serve de base para direcionar medidas de preservação."
Como já faz com cidades do Street View, a empresa planeja atualizar de tempos em tempos as imagens de Noronha, e de todas as reservas e parques que constituem o Google Parks e o Oceans. No início deste ano, a companhia lançou uma ferramenta on-line, a Digital Timeline (em português, Linha do Tempo Digital), pela qual usuários acompanham o progresso das fotos em 360 graus feitas em regiões urbanas. Garante Nora: "O objetivo é expandir para as rurais e para o que chamamos de off-roads, categoria em que está Noronha".

Não há, porém, tempo certo de atualização das imagens. Resta confiar na promessa. E por que é quase certo que ela será cumprida? O Google não faz o mapeamento apenas por bom-mocismo, é evidente. A ideia de mapear o mundo surgiu em 2001, como proposta de Larry Page, um dos fundadores da empresa. O projeto começou pela cidade de São Francisco, nos Estados Unidos, e hoje está em 63 países, além de partes do Ártico e da Antártica. Apesar de não existir faturamento direto com a iniciativa, é fácil detectar como ela atrai mais dinheiro para os cofres da companhia. Uma em cada cinco buscas feitas no google.com são ligadas à geolocalização. São pesquisas como "Onde é o restaurante X" ou "Como ir de carro de São Paulo ao Rio de Janeiro". Ao atrair para seu site mais pessoas que estão atrás dos mapas, a empresa consegue aumentar a visualização de anúncios, sua principal fonte de receita.

Não foi fácil, porém, colocar Noronha no radar do Google. Os cartógrafos modernos encararam dois desafios. O primeiro foi passar pela típica burocracia brasileira - levaram dois anos para conseguir as aprovações necessárias para dar gás à iniciativa nos parques nacionais. O segundo foi superar a dificuldade de acesso do arquipélago. Para fotografar as ilhas, câmeras foram acopladas a carros, bugues, barcos (que fizeram fotos da costa) e mochilas de fotógrafos a pé. No mar, um mergulhador utilizou um aparelho à prova de água e que resiste à pressão de profundidades de até 30 metros (leia mais abaixo).

"Viajo o planeta inteiro mergulhando, e estive em todas as gravações submarinas do Google. Mas nunca havia visto formações rochosas e peixes como os de Noronha", afirma o francês Christophe Bailhache, o principal mergulhador do projeto. Bailhache se espantou apenas com um ponto: encontrou poucos animais marinhos de grande porte, a exemplo de tubarões. Ao analisar o histórico da ilha, tradicionalmente rica nessas espécies, ele e sua equipe deduzem que alterações no ecossistema, tanto pela poluição humana quanto por fatores como o aquecimento global, já podem ter afetado a população desses animais (mal que, pela falta de acompanhamento, nunca foi adequadamente registrado).

Por uma ótica abrangente, projetos como o do Google em Fernando de Noronha são essenciais como incentivo a uma atividade que sempre esteve no cerne da humanidade: a exploração. O homem moderno surgiu na África há quase 200 mil anos e de lá se expandiu pelo mundo (e, mais recentemente, pelo cosmo). Os desafios impostos durante nossa caminhada foram vencidos com base na inventividade. Motivados pela ambição de conhecer tudo o que há, criamos mapas, carroças, bússolas, barcos, carros, o GPS, ônibus espaciais e sites de geolocalização. A evolução científica e cultural está intrinsecamente ligada à superação de fronteiras. Como disse o químico inglês Humphry Davy, descobridor de uma série de elementos naturais com os quais hoje somos familiarizados (como o cálcio): "Nada é tão perigoso para a mente quanto assumir que nossas visões estão concluídas e que não há novos mundos para conquistar".


A BELEZA QUE PODE DESAPARECER
A Grande Barreira de Corais, um dos maiores símbolos da Austrália e a primeira área submarina a ser mapeada pelo projeto Google Oceans (responsável por digitalizar também o Arquipélago de Fernando de Noronha), foi reconhecida pela ONU como patrimônio da humanidade, status dado a lugares e construções únicos e de valor inestimável, há 33 anos. No ano que vem, porém, ela deve garantir seu nome em outra categoria, esta em nada gloriosa: a de patrimônios ameaçados. Isso porque, nas últimas três décadas, os corais australianos perderam metade de sua extensão e começaram a apresentar uma coloração mais esbranquiçada (veja a foto acima), indício de queda na diversidade de nutrientes.

O desastre põe em risco a sobrevivência de corais de 400 tipos e das 1.500 espécies de peixes, baleias, golfinhos, tartarugas e pássaros que dependem deles. Isso levou a ONU a cogitar a inclusão da Grande Barreira na lista de ameaçados. Em meados de 2015 deve vir a confirmação do novo status da área, o que, no fim, pode ser até bom para a sua conservação - afinal, quanto mais evidente for a destruição da barreira, maior será a pressão para preservá-la.

Das muitas causas da devastação da Grande Barreira, duas são mais relevantes. A mais fácil de resolver: a poluição. Pesticidas e outros poluentes utilizados em fazendas próximas à costa são carregados pela chuva e pela maré até o recife. Para piorar, o governo australiano autorizou neste ano a dragagem de 3 metros cúbicos do leito marinho que abriga parte da barreira, devido às contínuas obras de expansão dos portos. A ampliação da região portuária ainda permitirá que mais navios ancorem na costa, atalho para um efeito dominó danoso. Esses barcos devem aumentar, ainda mais, a exportação de carvão do país. A queima desse combustível, por sua vez, intensificará a emissão de gás carbônico (CO2) e, em decorrência, o aquecimento global que impacta o planeta.

Isso leva à segunda causa, cuja solução ainda é enigmática: as mudanças climáticas que podem elevar a temperatura da Terra em até 4,8 graus no fim deste século. O fenômeno, cada vez mais preocupante, aquece e acidifica os oceanos, tornando-os ambientes hostis para os corais. A consequência fatal: a ameaça de 25% de toda a vida marinha, dependente dessas estruturas.


CARTÓGRAFOS DA ERA DIGITAL
O Google adotou duas táticas para digitalizar a Ilha de Fernando de Noronha. Fora da água, acoplou câmeras a mochilas, bugues, carros e barcos; no fundo do mar, um mergulhador levou o equipamento a 30 metros de profundidade

AS CÂMERAS EM TERRA...
- Peso do equipamento: 20 quilos
- Quilômetros digitalizados em Noronha: 50
- Com o GPS embutido, captam-se as coordenadas de cada clique, para formar o mapa de navegação no site do Google
- Um acelerômetro - dispositivo que ajuda a estabilizar as imagens - elimina a influência das vibrações do carro, do bugue, do barco ou de tropeçadas do cameraman
- O fotógrafo controla o aparelho com um smartphone
- O aparelho tem quinze câmeras, que tiram fotos em alta resolução ao ritmo de uma a cada 2 segundos e meio (o que dá a sensação de 360 graus das imagens)
- Após serem armazenadas nos servidores do Google, as imagens passam por um software que elimina das fotos a presença do fotógrafo e dos veículos de transporte, além de borrar o rosto de pessoas e as placas de carros

...E EMBAIXO DA ÁGUA
- Peso: 65 quilos
- Quilômetros digitalizados em Noronha: 6
- Há três câmeras acopladas ao aparelho, todas com lentes de grande ângulo de visão que tiram fotos a cada 3 segundos, em resolução superior à das clicadas em terra
- O GPS da câmera registra as coordenadas, a base para formar o mar subaquático
- A haste protege fios que transmitem as informações entre a câmera e o tablet
- A estrutura à prova de água resiste a profundidades de 30 metros
- Um software congrega as imagens, o que confere a sensação de visão em 360 graus
- No tablet, também à prova de água, o mergulhador ajusta as câmeras e confere as imagens capturadas

Veja, 26/11/2014, Tecnologia, p. 94-99
UC:Parque

Unidades de Conservação relacionadas

  • UC Marinho de Fernando de Noronha
  •  

    As notícias publicadas neste site são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.