Queimadas se alastram longe da Justiça

O Globo, Rio, p. 14 - 19/03/2008
Queimadas se alastram longe da Justiça
Fogo destruiu 29,2 quilômetros quadrados de reservas nos últimos 2 anos

Daniel Engelbrecht, Elenilce Bottari, Paulo Marqueiro e Tulio Brandão

Um alpinista habitué do Parque da Tijuca viu a cena: garotos que acampavam no alto da Pedra da Gávea decidiram atear fogo ao mato seco, só por diversão. Em minutos, o barato deles custou caro à floresta. As chamas consumiram boa parte da vegetação rara do topo do maciço, num dos piores incêndios na unidade ano passado. Os vândalos escaparam ilesos e impunes, assim como quase todos os responsáveis pelos incêndios no Estado do Rio. Atear fogo a mata ou floresta representou menos de 1% do total de processos julgados ano passado na Justiça estadual com base na Lei de Crimes Ambientais.


Longe da Justiça, as queimadas se alastram. Nos últimos dois anos, só nas unidades de conservação estaduais e federais, o fogo atingiu uma área de 29,2 quilômetros quadrados, o equivalente a 24 Parques do Flamengo ou ao município de Nilópolis. O presidente do IEF, André Ilha, admite o avanço das queimadas. Para ele, o incêndio é quase sempre criminoso.
- Não existe combustão espontânea de mata. Isso é um mito. O maior incêndio em unidades estaduais ano passado, que consumiu 1,1 milhão de metros quadrados do Parque da Concórdia, partiu de uma fazenda.

Peguei as duas piores ondas de incêndio da década, em 2002 e 2007, quando houve uma combinação de estiagem longa com temperaturas elevadas.

Seca pode não ser determinante
A seca é certamente um dos principais fatores na propagação de incêndios, mas não o determinante. Numa comparação entre focos de incêndio identificados por satélite e a precipitação observada no estado pelo Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos (Cptec/Inpe), se observa que em 2001, um dos anos mais secos da década, houve 307 pontos de incêndio no estado. Em 2003, mesmo com mais chuva, o número de focos subiu para 313.

Para o coordenador do grupo de estudo de Queimadas do Cptec/Inpe, Alberto Setzer, o maior problema não é a seca, e sim o poder público:
- Do ponto de vista técnico (monitoramento e prevenção), tudo está feito. O que falta é postura das autoridades, que deveriam aplicar a lei. Todas as queimadas são criminosas, causadas pelo homem.

Quem sofre com isso é o coordenador do Prev-Fogo, Flávio Luiz, há 11 anos no grupo que, durante a seca, se dedica a combater os incêndios nas importantes unidades de conservação federais do estado.

Ele diz que é difícil identificar responsáveis, diante das dificuldades técnicas da perícia: - A lei não adianta. Não temos acesso ao infrator, salvo nas atividades agrícolas, onde é possível identificar o proprietário. Nas áreas urbanas, os infratores mais comuns são o baloeiro e o vândalo. Nas outras regiões, o fogo vem da terra queimada por agricultores, de fogueiras de caçadores e andarilhos e até do motorista de caminhão, que incendeia o mato para enxergar melhor a estrada.

O Artigo 41 da Lei de Crimes Ambientais (provocar incêndio em mata ou floresta) prevê pena de dois a quatro anos de reclusão e multa. Se o crime for culposo, a pena é de detenção de seis meses a um ano e multa.

Por imperícia, negligência, imprudência ou dolo, ocorrem incêndios como o que devastou 600 hectares de vegetação - parte dela endêmica (só existente naquele local) - do Parque Nacional do Itatiaia.

Numa das poucas vezes que o culpado foi encontrado e o caso chegou à Justiça estadual, a denúncia partiu de um particular prejudicado e a pena foi irrisória. Em julho de 2006, Manoel Jorge Rodrigues Ferreira, morador de um sítio em Sumidouro, na Região Serrana, ateou fogo à pastagem. As chamas atingiram o sítio vizinho, do advogado Paulo Kastrup Netto, destruindo 5 mil metros quadrados de mata nativa. O advogado denunciou o fato ao Ministério Público, que ajuizou uma ação contra Ferreira.

Kastrup lembra da dificuldades que teve com o processo: - Para conseguir que um técnico do Instituto de Criminalística Carlos Éboli fosse até o sítio elaborar o laudo, foi preciso esperar dois meses.

Quando ele chegou lá, a máquina fotográfica deu defeito.

Ao fim, acusado e MP chegaram a um acordo. Ferreira comprometeu-se a pagar dez cestas básicas, no valor de R$ 50 cada, e livrouse de uma possível condenação. A área atingida não foi reflorestada.

Nas cada vez mais escassas matas urbanas - quase todas protegidas por lei - o problema maior vem do céu, como aconteceu na noite de 4 de janeiro deste ano. Leitores ligaram para O GLOBO informando que um balão caíra na encosta do Morro Dona Marta, no entorno do Parque da Tijuca. Pouco depois, as ligações denunciavam o incêndio, que consumiu cerca de 20 mil metros quadrados de vegetação - até hoje não recuperada.

Lei não intimida os baloeiros
A cultura de balões não se curvou à letra de Lei de Crimes Ambientais. Um indicativo disso é que, nos últimos três anos, o número de apreensões feitas pelo Batalhão Florestal aumentou dez vezes.

A última delas aconteceu na manhã de 17 de fevereiro, num descampado em Campo Grande, Zona Oeste, onde um festival de balões reuniu cerca de duas mil pessoas. Cinco delas foram presas, mas negaram participação no crime.

Foram apreendidos 42 balões, alguns com até 30 metros de altura - o correspondente a um edifício de dez andares - além de 35 bandeiras e 15 botijões de gás com maçaricos.

Os cinco presos pagaram fiança de R$ 1.900 e foram liberados no mesmo dia. O Artigo 42 prevê pena de detenção de um a três anos para quem fabrica, transporta ou solta balões.

- O jeito é pagar dez cestas básicas. Melhor do que ficar preso - disse Fernando Conforti da Fonseca, um dos presos. Segundo o tenente Érico Cardoso, que chefiava a operação, as pessoas sempre dizem que estavam apenas observando.

- Só fui preso porque sou safenado e não pude correr. Tinha mais de duas mil pessoas. Todo mundo deu no pé e eu fiquei - disse o vendedor José Carlos da Silva, morador de Realengo.

Os festivais de balões acontecem o ano inteiro, em lugares que mudam constantemente. Apesar de o número de apreensões de balões pelo Batalhão Florestal ter aumentado nos últimos três anos, os processos com base no Artigo 42 ainda são raros. Eles representaram apenas 0,4% do total de sentenças dadas ano passado na Justiça estadual com base na Lei de Crimes Ambientais.

O estado pretende reagir ao avanço das queimadas. O IEF formulou um plano de combate a incêndios florestais que prevê a criação de um comitê de gestão integrada, com participação do órgão estadual, do Ibama e do Corpo de Bombeiros.

Unidades de conservação estaduais e federais seriam interligadas por um sistema de rádio transmissor. Em cada área, haveria uma estação de monitoramento de temperatura, umidade relativa do ar e intensidade de ventos, que determinaria os riscos de incêndio (baixo, médio ou alto). André Ilha garantiu que o sistema será implantado ainda este ano.

O Globo, 19/03/2008, Rio, p. 14
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