Nos livros, a floresta

O Globo, Razão Social, p. 12-16 - 07/06/2011
Nos livros, a floresta
Escolas da Reserva de Desenvolvimento Sustentável de Mamirauá vão usar fauna e flora para educar

Camila Nobrega
camila.nobrega@oglobo.com.br
Enviada especial ao Amazonas

De uniformes cor laranja lavados na beira do rio, cabelos cuidadosamente penteados e pés descalços, crianças de 7 a 14 anos se amontoavam na única sala de aula da comunidade ribeirinha Boca do Mamirauá, município de Uarini, Amazonas. Em torno de caixotes de madeira que funcionavam como uma biblioteca improvisada elas folheavam uma cartilha educacional que chegou ao local há dois meses, mas já está ganhando a simpatia de alunos e professores.
Em curtos intervalos, surgiam gargalhadas dos menores, ao reconhecerem nas páginas bichos que veem todos os dias no seu quintal, a Floresta Amazônica. Jacaré-açú, boto, macaco Uacari, tambaqui. Estão todos ali. Já os maiores ensaiavam, com dificuldade, a leitura de textos. Sussurrando, Ediandra Gomes, de 13 anos, tomou a frente:
-A es-ca-ma é g-r-a-ú-d-a. A escama é graúda! Li isso na aula, é sobre a escama do pirarucu. Eu via pirarucu toda hora, mas não sabia disso - brincou a menina, encolhendo-se, com vergonha da lentidão que ainda possui na leitura, embora tenha sido alfabetizada aos 6 anos. - Nós somos devagar (sic), mas a gente lê.
A menina era uma das mais excitadas com o mais novo instrumento educacional recebido pelos professores de Boca do Mamirauá e de outras 19 comunidades vizinhas, próximas à cidade de Tefé. São todos moradores de um dos pedaços mais exuberantes da Amazônia, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, no médio Solimões.
Mas não estavam acostumados a ver a realidade da floresta em sala de aula. Essa é a mudança que propõem as cinco cartilhas produzidas pelo Instituto Mamirauá, com aval da prefeitura do município.
Os exemplares, distribuídos a mais de cinco mil crianças, são resultado de mais de dez anos de atuação do Instituto Mamirauá na reserva. Eles foram produzidos a partir da troca de saberes entre os pesquisadores de universidades públicas do Amazonas e do Pará, e os moradores da região. A pedagoga Elizabeth Mendanha arrematou os textos, com sugestões dos dois lados. Nas cartilhas, as crianças vão entender, por exemplo, porque a renda de famílias da comunidade foi quadruplicada nos últimos dez anos, depois que os adultos aprenderam a fazer o manejo do pirarucu. Está ali também o conceito de outro manejo, muito falado no mundo inteiro, o da madeira amazônica. Depois que moradores começaram o manejo, a renda familiar foi multiplicada por cinco, segundo dados do Instituto Mamirauá. As cartilhas ensinam porque é preciso esperar que uma árvore tenha determinado diâmetro para cortá-la. A esperança é que o investimento na educação prepare as próximas gerações de ribeirinhos, essenciais na preservação da Amazônia, uma das maiores áreas de floresta do mundo.
Embora a cartilha seja apenas um instrumento de trabalho, em meio a uma série de carências da rede educacional da região, ela está sendo recebida com entusiasmo por professores, como Luiza Luna da Silva, que trabalha na sede de Uarini.
Trata-se da maior concentração habitacional do município (cerca de vinte mil pessoas), que é composto ainda pelas comunidades espalhadas dentro da reserva Mamirauá. Junto com professores de todas elas, Luiza foi capacitada para usar a cartilha, como parte do projeto desenvolvido pelo Instituto Mamirauá, em parceria com a petroleira Exxon Mobil.
- Meus alunos faziam redações com palavras como "shopping", "praça", "apartamento". Eles nem sabem o que elas significam!
Por que não podemos falar sobre o trânsito nas embarcações?
Sem entender, a criança não assimila. E também aprende a dar valor a tudo o que vem de fora. Está mais do que na hora de as nossas crianças darem o devido valor à Amazônia - disse Luiza.
Enquanto o mundo estuda a Amazônia, os brasileiros que habitam a região sequer têm noção da importância do bioma.
Dentro da reserva - numa área de várzea - a imagem do gigante Solimões em época de cheia, deixando à mostra apenas a copa das árvores num verde vivíssimo, contrasta com lixo jogado ao redor das casas de palafita, com o esgoto lançado nos rios e com a escassez vivida pelas populações ribeirinhas, até de alimentação. Combinação de entre ausência do poder público e falta de conscientização dos moradores.
Com a capacitação dada pelo Instituto Mamirauá a moradores para usar a floresta de forma sustentável, as coisas estão mudando. Na comunidade Sítio Fortaleza, a duas horas de barco de Uarini, um dos professores capacitados a usar a cartilha é exemplo. Severino Silva largou as motosserras pela escola. Ele vendia madeira ilegal barata para um político da região.
- Fui um dos culpados pela escassez que minha comunidade vive hoje. Cortei muita madeira. Mas hoje tenho um papel importante, trazendo para a escola a necessidade de se respeitar a floresta.
Estávamos na região acompanhando um grupo que foi ao local por causa do lançamento da cartilha. Além de Edila Moura, uma das coordenadoras do Instituto Mamirauá, a então presidente da petroleira Exxon Mobil, Carla Lacerda (ela assumiu um cargo em Huston no final de maio), também estava presente. As comunidades aproveitaram a presença da presidente, para mostrar que o desafio de melhorar a educação vai muito além dos novos livros. Mesmo os adolescentes têm dificuldade para ler. E alguns são analfabetos funcionais. Juntam as letras, mas não conseguem explicar o que foi lido. Não há espaço para separar as crianças por séries, nem professores suficientes.
Embora não tenha escondido a surpresa com a enorme expectativa das comunidades em relação a Exxon Mobil, Carla Lacerda foi clara sobre a atuação da empresa:
- Vim à Amazônia para ver de perto o projeto e levarei sugestões dos moradores e do instituto para a empresa.
Mas não podemos tomar o lugar do poder público. A empresa não tem esse poder, nem grande receita para o projeto no momento.
Segundo o secretário municipal de Educação de Uarini, Edvilson Lopes, as populações da Amazônia têm sérias carências educacionais e há dificuldade até em se comunicar com o Ministério da Educação (MEC)
- Na Amazônia é tudo isolado. O país fala em floresta, mas não olha para moradores dela. O único jeito de preservar é educar as populações - disse Lopes - As cartilhas vêm para ajudar, mas minha preocupação é com a continuidade desse projeto. É preciso capacitar mais professores.
O município depende de parcerias e a principal é o Instituto Mamirauá. Há escolas em que turmas só têm duas horas de aula por dia. Quando falta merenda, o que acontece com frequência pela dificuldade de acesso, as aulas são suspensas.


Reduzir lixo é desafio na Amazônia

Camila Nobrega
camila.nobrega@oglobo.com.br

Na chegada à sede do município de Uarini, motos enfileiradas e urubus recebem os visitantes. As motos são facilmente explicadas, estão ali aos montes, porque são o meio de transporte mais popular na microrregião de Tefé, no Amazonas.
Quando chega um visitante, os motoqueiros ficam a postos, para oferecer serviço de mototáxi, regularizado pelo município, já que não há transporte público.
Mas por que tanto urubu na chegada à cidade?
A impressão inicial é que há alguma carniça por perto. Mas, após alguns minutos de caminhada nas ruas da cidade, vê-se que eles também estão ali aos montes. A situação fica mais compreensível quando se vê o que há lixo largado por toda a cidade. A coleta é falha e os moradores não se importam com o acondicionamento dos resíduos. Isso tudo, à beira do rio Solimões, um dos maiores da Amazônia.
Andando pelas ruas, posados nas janelas coloridas de casas de madeira, em meio às crianças, os urubus são parte da paisagem de Uarini. Mesmo na porta dos pequenos restaurantes. Não só ali, como também na própria cidade de Tefé. Já causaram até o fechamento do aeroporto da cidade por mais de dois meses, porque ofereciam perigo aos aviões. Aliás, o aeroporto vive na iminência de ser fechado novamente por causa disso.
Por onde passamos, deu para perceber que as noções de higiene são fracas. Muitas crianças vão à escola de pé no chão, e água potável é algo que existe para poucos. E a maior parte das casas não tem sequer fossa séptica: o esgoto vai direto na água do rio, que muita gente bebe sem tratamento. Além da malária, que é a principal doença na região, são comuns também diarreias e verminoses.
Há dificuldade de se locomover para qualquer lugar, pois a travessia só pode ser feita de barco. Em época de cheia, há de se enfrentar fortes chuvas (fortes mesmo, tive o prazer de conhecer um típico pé d'água local). Já na seca, os barcos têm dificuldade de navegar.
As fontes de renda são poucas. O peixe é a principal, junto com a produção de farinha e cultivo de poucas frutas.
Já a educação teve melhoras, mas ainda é precária. Alguns professores fizeram ensino superior por meio de uma parceria do Instituto Mamirauá com a prefeitura e o estado, mas ainda há muitos que possuem apenas o ensino médio. Muitos habitantes nunca frequentaram a escola. Mas há um esforço para conscientizar as novas gerações e, entre as crianças, é mais comum ouvir algo a respeito da preservação da Amazônia.


MCT é principal parceiro do instituto

Antes mesmo da criação do Instituto Mamirauá, em maio de 1999, o pesquisador José Márcio Ayres já havia desenvolvido projetos com as comunidades locais. Ele foi o idealizador da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, oficializada em 1996, e também fundador do instituto, que hoje tem como principal financiador o governo federal, pelo Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT).
O objetivo da criação do Instituto Mamirauá foi, desde o princípio, estabelecer um diálogo entre as pesquisas desenvolvidas sobre a Amazônia e as populações locais. A Reserva de Desenvolvimento Sustentável foi delimitada numa área de várzea (completamente alagável em período de chuvas), que possui grande biodiversidade e muitas espécies endêmicas. Foi a primeira área de várzea protegida no país e também a primeira unidade de conservação que associou ações de proteção da natureza à participação da população local no gerenciamento dos recursos naturais.
Segundo uma das coordenadoras do Instituto Mamirauá, a pesquisadora Edila Moura (UFPA), boa parte do conhecimento desenvolvido nesses mais de dez anos foi uma combinação entre o saber tradicional dos moradores das comunidades - pescadores, agentes ambientais, professores locais, entre outros - e as pesquisas acadêmicas feitas em universidades da região, como a Estadual do Amazonas e a Universidade Federal do Pará.
- Já houve situações em que os pesquisadores propuseram uma forma de manejo e os pescadores provaram que era preciso fazer mudanças no projeto. Na prática, eles são experts. Por outro lado, houve momentos em que a comunidade duvidou de propostas do instituto. Levamos tempo, mas muitas vezes conseguimos provar aos moradores que era melhor mudar.
Assim segue o trabalho do instituto, sob os olhares críticos e, ao mesmo tempo, grande apoio dos moradores. São oferecidas capacitações para agentes ambientais, cursos de manejo - sejam de pesca ou madeira - além de outros projetos desenvolvidos. Embora tenham sido registradas grandes melhorias, em relação a renda familiar e até preservação de certas espécies, ainda falta um longo caminho, segundo Edila:
- A igreja é a única instituição aceita. E o poder público é muito ausente. O Ibama tem sido parceiro, e hoje os moradores entram em contato com o órgão caso tenham uma denúncia de irregularidade ambiental, mas ainda há uma grande área sem fiscalização alguma.
A maior verba do instituto, que tem cerca de R$ 12 milhões de financiamento por ano, vem do MCT. Mas também há apoios do setor privado, como é o caso da Exxon Mobil. A empresa, no entanto, não divulga os investimentos no instituto, nem no projeto das cartilhas educacionais. Segundo a assessoria, é a política da empresa, mesmo se tratando de um projeto de responsabilidade social.


"Há pessoas por trás das florestas" Secretário municipal de Educação de Uarini denuncia abandono

Entrevista / Edvilson Lopes

Camila Nobrega
camila.nobrega@oglobo.com.br

Há dois anos, Edvilson Lopes está à frente da Secretaria municipal de Educação de Uarini, dentro da microrregião de Tefé (AM). Na entrevista abaixo, ele fala sobre os desafios de promover a educação no local:

O Globo:Quais as principais carências da educação local?

Edvilson Lopes de Souza: Várias. Somos carentes de muita coisa. Faltam salas, professores qualificados e material. Agora estamos conseguindo que as crianças fiquem na escola no turno da manhã todo ou à tarde. Até pouco tempo atrás, algumas turmas só tinham duas horas de aula por dia.

O Globo:E a merenda?

Lopes: Às vezes, é preciso suspender as aulas, porque não há merenda. É difícil transportar os alimentos. Há comunidades que ficam a mais de seis horas da sede, de barco. E há dificuldade de comunicação com o Ministério da Educação (MEC). Nossa luta é isolada.

O Globo Quais são consequências da falta de uma educação de qualidade?

Lopes: Desinformação. As pessoas ateiam fogo na floresta para matar a fome. E acham que logo vai crescer. A população não sabe a importância disso aqui. Não imagina o mundo olhando para a Amazônia. E tudo isso é falta de educação, de cultura.

O Globo: O uso das cartilhas está trazendo mudanças?

Lopes: Mudar a cabeça das pessoas é um processo lento. As cartilhas são uma parte de um grande esforço, com ajuda do Instituto Mamirauá, e também da Fundação Amazonas Sustentável. Mas precisamos de mais. Queremos que o mundo olhe para os seres humanos nas florestas.


Turismo gera renda em Mamirauá

Camila Nobrega
camila.nobrega@oglobo.com.br

Quando um barco se aproxima de uma comunidade ribeirinha na reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, logo surgem pequenos bracinhos acenando e sorrisos emoldurados pelas janelas nas casas de palafita. Os moradores, principalmente as crianças, estão se acostumando a receber visitantes no local. O programa de ecoturismo vem crescendo na Reserva e se tornou uma das principais fontes de renda para cerca de 76 famílias.
Construída no meio do Lago Mamirauá sobre sete estruturas flutuantes, a pousada Uacari é a principal hospedagem na reserva e atrai centenas de turistas todos os anos, sendo 70% deles estrangeiros.
Das janelas dos quartos, que flutuam sobre troncos imensos de madeira (sim, este é um passivo que ainda não tem alternativa), os hóspedes têm uma vista privilegiada de um rico pedacinho da Amazônia.
Centenas de aves ficam o dia todo no entorno da pousada e, com frequência, é possível ver jacarés no lago, além de botos vermelhos (os famosos botos rosas) e tucuxis (botos cinza). Tudo isso cercado por um verde que parece não ter fim.
O objetivo da implantação da pousada, com apoio do Instituto Mamirauá, era conseguir uma infraestrutura de mínimo impacto, com promoção da capacitação do pessoal local. A gestão da pousada é comunitária, feita por sete comunidades ribeirinhas. E segundo o vice-presidente da comunidade de Boca do Mamirauá, Ivan Baliero, além de gerar renda, o trabalho na pousada tem gerado também conscientização:
- Sustentável é o lugar onde a gente se cria, de que a gente cuida e depois pode explorar - disse. - Aprendemos isso no manejo dos recursos e também no ecoturismo. Se não preservarmos, nossa renda acaba.
Mais de 200 pessoas já foram capacitadas pelo Instituto Mamirauá para trabalhar em serviços ecoturísticos. São guias, cozinheiras, barqueiros, camareiras e alguns até já se preparam para assumir níveis de gerência na pousada Uacari (uakarilodge.com.br), que leva o nome do macaco de cara vermelha e pelo branco, endêmico da região.
As decisões de gestão são tomadas em conjunto pelas comunidades. E os passeios oferecidos vão desde a contemplação da floresta até a interação com as comunidades, para que se possa conhecer o dia a dia das pessoas na Amazônia.
Em 2010, segundo o Balanço Social do Instituto Mamirauá, a renda média relacionada a atividades turísticas dessas famílias chegou a R$ 2.569, um valor significativo para os moradores.
A repórter viajou a convite da Exxon Mobil

O Globo, 07/06/2011, Razão Social, p. 12-16
UC:RDS

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