'Não facilito nem dificulto'

OESP, Aliás, p. J3 - 09/09/2007
'Não facilito nem dificulto'
Eis o lema de Marina para licenças ambientais. Para desespero de uns e desconfiança de outros

Marina Silva Ministra do Meio-Ambiente

Laura Greenhalgh

Enquanto representantes de 22 países, entre chanceleres, ministros e enviados da ONU, reuniram-se na semana passada para dois dias de debates no Rio de Janeiro - na pauta, como construir uma governança global em meio ambiente -, ardia em fogo alto um dos mais belos e impressionantes patrimônios naturais brasileiros: o Parque Nacional da Chapada dos Guimarães, no Estado do Mato Grosso, santuário de flora, fauna e formações rochosas de importância invulgar. O incêndio já se arrastava por dias, devastando 10% da área do parque e exibindo as dificuldades operacionais de combate ao desastre. Equipes não alcançavam as regiões de difícil acesso. Faltavam aviões para despejar água e debelar os focos. As labaredas ficaram assustadoras. Porém a ministra Marina Silva teve de fincar pé no Palácio do Itamaraty, no Rio, como anfitriã do encontro intergovernamental, ao lado do ministro Celso Amorim, das Relações Exteriores.

A vida de Marina tem dessas alterações de percurso. Apesar do incêndio no parque, a ministra precisava não só receber seus convidados, como servir-lhes a posição brasileira sobre o tema central da agenda. Saiu-se bem. Em fevereiro do ano passado, num encontro em Nairóbi, promovido pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, o Pnuma, representantes de vários países pediram que o Brasil entrasse numa disputa de braço entre a França e o G-77 (grupo que reúne países em desenvolvimento) sobre como, e em que instância, discutir globalmente os desafios ambientais num mundo em que o nível dos oceanos sobe, as geleiras derretem, os furacões rodopiam pelos trópicos, as enchentes devastam cidades e o medo dos viventes tornou-se, digamos, uma verdade inconveniente. "Lá em Nairóbi, o debate ficou polarizado, quase um impasse. Voltando ao Brasil, procurei o ministro Celso Amorim e decidimos construir uma alternativa." Explica-se: França acha que se deve criar uma agência internacional para tratar de governança ambiental. O G-77, com Estados Unidos, não quer nada novo. E como fica a "terceira via" brasileira? "Lançamos a idéia de criar uma organização guarda-chuva, envolvendo as agências já existentes, com suas convenções e seus secretariados, mas que não seja meramente regulatória. Que some forças, estimule a cooperação internacional e dê atenção às necessidades regionais", explica Marina. A França gostou do arranjo. Alemanha e Itália apoiaram-no com vigor. A África do Sul quer aprofundar a proposta. E, assim, a dupla Marina-Amorim, satisfeita, deu por encerrados os trâmites no Rio, aguardando futuras rodadas de discussão.

Os dois ministros de Lula teriam cumprido a tarefa de colocar o Brasil na vitrine de um debate que hoje galvaniza a atenção mundial? A acreana Maria Osmarina Marina Silva de Sousa Vaz Lima, 49 anos, rejeita a provocação com mais argumentos do que nomes na certidão de batismo. Depois de sobreviver a tormentas no ministério, pressionada por setores econômicos e interesses do governo, no entanto preservada por uma antiga relação de camaradagem com o presidente, Marina usa de uma certa independência ao afirmar que "não é de hoje que o Brasil tem peso nos fóruns internacionais de meio ambiente". Ou seja: não adota o discurso "nunca antes na história deste País...". Ao contrário. "A credibilidade brasileira é feita de experiências acumuladas", afirma. "Não é à toa que sediamos a Rio-92 e não é à toa que podemos nos credenciar para a Rio+20, em 2012." Não se abala com os radicais verdes que a consideram uma espécie de cooptada pelo sistema. Acha que a ecologia romântica está fora do contexto e conjuga a todo momento o binômio desenvolvimento econômico versus sustentabilidade. Tem o trunfo de poder exibir, em fóruns globais, índices declinantes de desmatamento na Amazônia. "Reduzimos entre 65% e 70% nos últimos quatro anos", diz e repete nesta entrevista ao Aliás. Crava: "Não mudei à frente do ministério. Peremptoriamente afirmo: aqui não se facilita nem se dificulta nada".

O Brasil almeja protagonismo ao liderar posições no debate sobre governança ambiental global?

Não, porque o Brasil já é muito importante. Nenhuma discussão ambiental no mundo pode nos olvidar. A União Européia tem essa consciência. Os EUA, também. No G-77 o Brasil ocupa posição de respeito e credibilidade. Isso não vem por acaso. O País teve uma forte presença na Convenção sobre Mudanças do Clima ao defender o conceito das responsabilidades comuns, porém diferenciadas. E somos uma potência em recursos naturais. Temos 60% da maior floresta tropical do mundo, 20% das espécies vivas do planeta, mais de 11% das reservas de água doce, não há como ignorar esses dados.

Então o cacife brasileiro não vem de agora?

É um processo feito de experiências acumuladas.

O combate ao desmatamento virou cartão de visita brasileiro nos fóruns internacionais?

Se disser isso serei injusta com outras conquistas que o Brasil alcançou. Mas um dos grandes desconfortos internacionais que o País tinha era, de fato, o desmatamento. Só que, desde 1988, vínhamos investindo em monitoramento por satélite na região amazônica, e isso virou uma coisa importante. Significa que se fez uma série histórica com informações de quase 20 anos! Não paramos por aí. Hoje o País tem um plano nacional de recursos hídricos, um plano nacional de combate à desertificação, avançamos em biodiversidade. Isso tudo é um processo que começou lá atrás. Não foi por acaso que sediamos a Rio-92. E não é por acaso que nos credenciamos a sediar a Rio+20, em 2012.

O que fez o desmatamento cair?

Havia anos de informações vindas do monitoramento por satélite. Quando cheguei ao ministério, em 2003, percebi que só se lidava com essas informações, inclusive dando publicidade a elas, depois de o fato consumado. Começamos a usá-las para interferir no processo, não para divulgar estragos. Isso foi decisivo. Reorientou as análises técnico-científicas e possibilitou pensar em políticas de estruturação, dispensando alardes e pirotecnias. Criamos um plano envolvendo outros 13 ministérios. Alavancamos o tema dentro do governo, fazendo com que a coordenação das ações partisse da Presidência da República, por meio da Casa Civil, com suporte técnico-executivo do Ministério do Meio Ambiente. Saímos em três direções: ordenamento territorial fundiário, combate às práticas ilegais, apoio às práticas produtivas sustentáveis. Esse esforço já rendeu 20 operações conjuntas do Ibama e da PF, a detenção de 660 pessoas, entre elas, mais de 120 servidores do Ibama, a apreensão de 1 milhão de m3 de madeira, a aplicação de R$ 3 bilhões em multas, sendo que a multa-padrão passou de R$ 1,5 mil para R$ 5 mil por hectare, por decreto do presidente. Desmantelamos algo como 1.500 empresas que atuavam com práticas ilegais. Transformamos 20 milhões de hectares em áreas de conservação e colocamos no ar um sistema de monitoramento em tempo real, para orientar a fiscalização. Os dados do monitoramento estão disponíveis para instituições de ensino e pesquisa, instituições privadas, enfim, procuramos trabalhar com toda transparência. Por isso os índices foram caindo. Em 2003, o desmatamento foi da ordem de 23 mil km2. Subiu para 27 mil km2, em 2004, e desde então vem baixando: 18 mil km2 em 2005, 14 mil km2 em 2006, e a previsão para 2007 é 9,6 mil km2.

Isso em termos amazônicos. E o restante do País?

Temos o Plano de Combate ao Desmatamento da mata atlântica, que caiu cerca de 75% nos últimos cinco anos, e isso é dado já consolidado. O que há é uma priorização de toda a problemática, passando pela relação meio ambiente/desenvolvimento. Ainda que setores do ambientalismo não compreendam isso, essa nova visão gera saldo positivo. Até 2003 havia 45 hidrelétricas encrencadas na Justiça por problemas ambientais. E não se passava de 145 licenças ambientais/ano. Em 2006, foram 272 licenças e hoje não há hidrelétrica judicializada. É um ganho. Porque se você faz um processo de licenciamento mal feito, num dado momento alguém vai acionar o MP com uma liminar, uma ação civil pública, e o projeto todo pára. Temos buscado processos mais consistentes. Assim foram dadas as licenças no Madeira, no São Francisco, na BR-63.

Ministra, a senhora pode se gabar dos índices declinantes de desmatamento na Amazônia, porém, há duas semanas vemos o Parque Nacional da Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso, ardendo num incêndio dramático. Há só um funcionário do PrevFogo em Cuiabá, faltam aviões para apagar os focos, está difícil proteger as pessoas, os bichos. Isso não a contradiz?

Considere outros fatores. Estamos atravessando um período terrível de seca, com baixa umidade e muito calor. Lidamos tanto com incêndios naturais quanto com incêndios criminosos. Esse tipo de problema está presente em outras partes do País nesta época do ano, não apenas na chapada. Houve fogo no Parque Nacional de Brasília, na Serra do Cipó, em Minas, no Parque de Itatiaia, no Rio, em vários outros lugares. Precisamos saber operar tanto na prevenção, contando com a população, quanto na emergência, ao distribuir equipes pelo País afora. Lá na chapada, estamos com mais de cem homens na linha de combate ao fogo, portanto, não se pode dizer que o Ibama esteja lá só com um funcionário ou algo assim. Nossos funcionários estão trabalhando duro, com bombeiros, equipes da Defesa Civil, grupos de voluntários.

Mas o fogo come solto há duas semanas. Já queimou 10% do parque. Será que a resposta não é lenta demais? É falta de estrutura?

Esse tipo de emergência não coloca um desafio só para o Brasil. Basta lembrar do incêndio gravíssimo que ocorreu na Grécia recentemente. É claro que precisamos aperfeiçoar nossa capacidade de resposta. Mesmo porque, no caso específico, trata-se não só de fazer frente a uma emergência, mas de resolver uma situação de alta complexidade. Você sabe o que significa enfrentar labaredas de até 5 m de altura, com umidadade do ar de 12% e ventos de até 10 km/h? Claro, sempre será melhor prevenir incêndios florestais do que tentar debelá-los. Com isso não estou dizendo que não temos problemas. Mas também não posso cometer simplificações do tipo "se tivéssemos mil homens na linha de fogo, o incêndio estaria sob controle". Às vezes, as condições ambientais limitam a ação humana.

Com a reestruturação do Ibama, que incluiu a criação do Instituto Chico Mendes, viu-se que o governo queria empenho em licenciar. O que se comenta é que o ritmo do licenciamento aumentou e há casos até de demissão de técnicos do seu ministério por não concordarem com as novas diretrizes.

Não houve uma única demissão por essa razão. O que há são casos de pessoas que desde o ano passado já haviam anunciado que deixariam o ministério. Nada a ver com licenças. E garanto: as licenças só saem quando as questões ambientais são resolvidas. Se não forem resolvidos problemas de sedimentos, problemas com a preservação dos peixes, só para ficar no plano das hidrelétricas, não há licença. E várias não foram dadas. Aqui neste ministério não se facilita nem se dificulta nada. Peremptoriamente digo que nenhum processo de licenciamento foi desvirtuado por pressões daqui ou dali. Tanto que, na reestruturação do Ibama, não houve mudança de uma vírgula na legislação ambiental brasileira.

A legislação não mudou. E a senhora mudou?

Não, porque sempre trabalhei com a idéia do desenvolvimento sustentável. Cheguei a este ministério com uma equipe que foi muito criticada, de início, justamente por ser de ambientalistas. Fomos em frente. Adotamos uma forte diretriz de controle social, com transparência e diálogo entre todos os setores, do empresariado aos catadores de papel. Aumentamos em 30% os efetivos do Ibama, em 20% os salários, estamos regularizando a situação de servidores do ministério que tinham contratos temporários havia 13 anos, fortalecemos parcerias com os Estados e municípios. No meu discurso de posse acentuei a importância do desenvolvimento sustentável, como posso ter mudado? Agora, aprender com o processo é da natureza humana. Todos estamos aprendendo no Brasil - o setor produtivo e o setor ambientalista. Faz parte da dinâmica do desenvolvimento.

E os seus ambientalistas? Mudaram?

Também não. Setores do movimento ambientalista no Brasil foram folclorizados, rotulados de ecoxiitas. Mas, de onde saem soluções para a maior parte dos projetos de desenvolvimento? Saem de estudos e pessoas que estão nas universidades lidando com a agenda ambiental. Ou de pessoas que estão dentro de organizações não-governamentais e instituições de pesquisa. Parte do setor empresarial brasileiro já dialoga tranquilamente com os ambientalistas.

Sua pasta foi criticada por um certo "amazonismo". Ou seja, pela ênfase que dá à região amazônica, em detrimento do resto do País.

Quem falou isso? Se houve essa crítica é porque pensaram que eu, que venho da região amazônica, iria dar mais atenção a ela. Não é verdade, muito embora se trate de um dos biomas mais importantes do planeta. Quando cheguei ao ministério, havia uma secretaria voltada para a Amazônia e um núcleo para a mata atlântica. Hoje temos trabalhos para todos os biomas. Para o cerrado, a caatinga, o pantanal, o pampa, a Amazônia, a mata atlântica. Agora mesmo estamos encaminhando a PEC do Cerrado para votação na Câmara (transforma a região em patrimônio nacional). Como se pode falar em "amazonismo"?

Acaba de acontecer uma reunião em Viena, preparatória de uma conferência em Bali, no final do ano, para avaliar o alcance do Protocolo de Kioto. Representantes de 151 países deixaram a Áustria meio murchos. Qual foi a participação brasileira?

Temos acompanhado todas as discussões referentes às mudanças climáticas do planeta e o Brasil tem uma posição definida: países desenvolvidos devem assumir e cumprir metas, enquanto países em desenvolvimento, ainda que não tenham metas obrigatórias, têm de assumir responsabilidades e compromissos. É uma posição equilibrada, afinal, 45% da matriz energética brasileira é limpa, ao passo que nos países ricos, isso não passa de 6%. Só o plano de combate ao desmatamento no Brasil, com os decréscimos dos últimos anos, vai reduzir as emissões em meio bilhão de toneladas de CO2. Isso é mais do que 20% de tudo o que deveria ser reduzido pelos países ricos!

Como é que a senhora vê o "mercado verde" que negocia créditos de carbono, movimentando algo em torno de US$ 1 trilhão?

As mudanças climáticas abrem oportunidades. Não podemos ficar pensando só em problemas. O Brasil acabou de apresentar uma proposta de compensação positiva pela redução de CO2 na atmosfera ao baixar o desmatamento. Isso representa dinheiro que poderá ser investido em modelos de desenvolvimento, com políticas sociais, com geração de emprego e tudo o mais. Enfim, as mudanças climáticas podem impulsionar um processo de reavaliação civilizatória, que passa por solidariedade, pela nossa capacidade de fazer parcerias e liderar pelo exemplo, não pela força.

A senhora parece não comungar da visão catastrofista que vem desse suceder de furações, enchentes, terremotos. Ou até das verdades inconvenientes levantadas por Al Gore.

Nem de longe acho que o trabalho do ex-vice-presidente americano coloque a questão numa perspectiva catastrofista. Al Gore mostra os problemas e nos convida a sair da posição de avestruz. É a sua grande colaboração. Conter a degradação do planeta implica mobilizar pessoas, empresas, governos, todos. Os problemas não são tão grandes que não se possa fazer nada. Nem tão pequenos que não mereçam nossa atenção.

Muito verde
"Cheguei ao governo com uma equipe de ambientalistas. Houve críticas"

Quem falou?
"Não existe amazonismo. Há trabalhos para todos os biomas no Ministério"

OESP, 09/09/2007, Aliás, p. J3
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