Conservação X Competição

O ECO - 31/10/2007
Aparentemente teremos de conviver a cada ano com a desagradável polêmica que acaba de se repetir em torno de se é ou não adequado que uma unidade de conservação de proteção integral seja palco de uma competição, servindo de pista de corrida para duzentos e tantos atletas, alimentando um negócio aparentemente muito rentável. Em 2006 foi o Parque Nacional do Itatiaia e em 2007 os Parques Nacional da Serra dos Órgãos e Estadual dos Três Picos. É absolutamente espantoso que a justiça tenha concedido uma liminar colocando o interesse particular dos organizadores e participantes do evento acima do interesse público da conservação da natureza. Estão de parabéns os responsáveis pelos dois Parques, que cumpriram com a sua obrigação ao tentar impedir um uso inteiramente em desacordo com as finalidades e o planejamento de uma unidade de conservação de proteção integral.

Temos vivido no Brasil um momento perigoso, em que pessoas com poder de decisão, mas aparentemente sem nenhum conhecimento sobre a base teórica que justifica a existência de unidades de conservação, resolveram usar a palavra "compensação" como uma chave mestra para abrir qualquer porta. Polui-se com automóveis e indústrias, degrada-se com obras gigantesca; depois, basta calcular quantas árvores ou quantos reais "neutralizam" o estrago. O Sistema Nacional de Unidades de Conservação, dizem as autoridades, será financiado com a famigerada compensação ambiental, dinheirama fantasma na qual dizia-se que o IBAMA estava sentado, tendo passado o lugar recentemente ao Chico Mendes. O dinheiro não aparece, as unidades de conservação continuam à míngua, mas o discurso serve para os promotores da "corrida de aventura" (que tem o prefixo "eco" no nome certamente pelo seu viés econômico) encherem a boca para justificar o uso inadequado dos Parques com os caraminguás que teriam investido lá como compensação, apesar de "não causarem dano algum", como dizem.

Para instruir melhor os juízes que andam concedendo liminares em favor de particulares que querem usar inadequadamente um bem público, seria importante que ficasse claro para a sociedade que unidades de conservação existem para preservar porções de ambientes naturais ainda relativamente a salvo do uso e ocupação da sociedade humana moderna. Elas são necessárias porque sem mecanismos regulatórios deste tipo, como já se viu em diversas partes do mundo, o homem ocupa até o último centímetro, corta até a última árvore, mata até o último animal e consome até a última gota de água. Se a sociedade fosse capaz de se auto-regular espontaneamente, não seriam necessárias unidades de conservação. Nem quaisquer outras medidas de proteção à natureza. Mas, paciência, decisões judiciais não são para ser contestadas, são para ser cumpridas, não é?

Nos anos 80, no Paraná começou-se a disputar uma "corrida de aventura" pioneira no Brasil, o Marumby Trophy. Organizada por montanhistas, que viram na idéia uma forma de popularizar o montanhismo, atrair adeptos, divulgar as belezas do local. Depois de algumas edições o evento foi suspenso, após a constatação, pelos próprios montanhistas e realizadores que o organizavam, de que o evento era altamente impactante, de que o espírito de que os competidores se imbuem quando querem vencer uma prova não os leva a tomar cuidado para não pisar no lugar errado, não se agarrar em plantas que não suportam seu peso etc.

Quando se concebe uma unidade de conservação de proteção integral na qual está prevista a visitação (como os Parques), há um espírito por trás deste conceito, que é o de permitir que um número maior de pessoas vivenciem um contato saudável com a natureza. Que conheçam a natureza de seu país, a admirem e respeitem. Entende-se que pessoas que tenham este tipo de experiência tendem a se tornar defensoras desta mesma natureza, pessoas que pensarão duas vezes antes de se tornarem agentes de um dano ambiental. Para que esta experiência alcance esta profundidade, é absolutamente indispensável uma atitude de buscar um contato harmonioso com a natureza. Caminhar por uma trilha ouvindo os sons da trilha, sentindo seus cheiros e percebendo suas cores. Pode-se potencializar este efeito através de informações, sejam científicas ou meras curiosidades, sobre a fauna, a flora, a geologia do local. Mas é essencialmente uma vivência que deve ser voltada àquilo que não somos no nosso dia-a-dia, sobretudo nós moradores de cidades. Mesmo atividades esportivas podem até ser aceitáveis dentro de uma unidade de conservação de proteção integral, desde que não tenham caráter velocista e competitivo, de modo que o praticante possa, sem pressa, sem atropelos, sem ansiedade, perceber o que há à sua volta que só ali existe.

Na corrida de aventura, o cenário para a experiência ímpar de contato com a natureza que um Parque pode ser, se converte num obstáculo a ser vencido o mais rápido possível. Quem parar para escutar o canto de um pássaro, meu amigo, perdeu, perdeu...

A discussão deve ser deslocada de uma eventual mensuração do impacto ou não impacto dos duzentos corredores, no dia seguinte. Como se pode dizer que uma atividade que leva duzentas pessoas a uma área natural não tem impacto? Toda visitação tem impacto. Mas as formas adequadas de visitação têm também um impacto positivo que é o que a justifica, trata-se de uma relação entre custos e benefícios, onde não se pode falar em benefício econômico. Ninguém pode aceitar que um grupo "compre" o direito de causar impacto em um Parque. Se um evento como esse é permitido, outros terão de ser também.

Aliás, pela lógica que rege empresas num mundo capitalista, todas as atividades devem sempre crescer. Se entra na moda, então, em vez de um por ano acabaremos tendo um por semana. Pois que façam suas corridas em locais que não estejam delimitados como território a ser preservado para as atuais e futuras gerações. Unidades de conservação não são uma frescura de alguns românticos, como parecem crer alguns empresários, jornalistas, juízes... (talvez a maioria da sociedade). Não há "compensação ambiental" no mundo que compense tal descaracterização dos propósitos da visitação em um Parque.

Não há nada mais frustrante para quem se dedica à estruturação de uma unidade de conservação, com toda a escassez que as caracteriza no Brasil, do que perceber que querem transformá-la num cenário exótico para os caprichos de uns poucos e para os negócios de uma empresa. Que decisões dos que respondem pela unidade são atropeladas em Brasília. E que há quem considere que "tudo tem um preço". Não, nem tudo tem preço. Os princípios que estão por trás do conceito de unidade de conservação não têm preço. É preciso que se interrompa de uma vez essa prática nociva de demolir princípios em troca de alguma "compensação".
UC:Geral

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