A vida secreta e intensa do Parque Nacional do Itatiaia

O Globo - http://oglobo.globo.com/ - 24/09/2016
Estudo com armadilhas fotográficas revela flagrantes das florestas de neblina


Mergulhada em bruma e dominada pelo verde-escuro das árvores gigantes da Mata Atlântica em glória, a floresta nas redondezas do abandonado Hotel Simon, na chamada parte baixa do Parque Nacional do Itatiaia (PNI), leva fama de assombrada. Deixados os fantasmas de homens em paz, vagam de fato por lá espíritos, mas de outro tipo. Reais, de carne, músculos e ossos. Onças reinam ali. Elas são senhoras de um dos últimos refúgios das florestas originais, uma ilha verde a meio caminho entre Rio e São Paulo, as duas maiores metrópoles do Brasil, a menos de 200 quilômetros das multidões do Centro carioca.


Mistérios da terra onde a onça reina

Difíceis de ver devido à natureza esquiva dos grandes predadores, as onças-pardas fazem sentir sua presença nas marcas deixadas nas árvores onde afiam as garras, em pegadas em trilhas. E, vez por outra, nos restos de suas presas. Quando a luz do dia esmorece e a noite cai, as onças parecem estar em toda parte. Embora em tese a hora das onças comece após o crepúsculo, elas parecem ignorar os livros de biologia. No dia 12, na calmaria de uma segunda-feira de fim de inverno, quando o movimento de turistas despenca, um dos guardas do parque foi surpreendido por volta do meio-dia. Deparou-se com uma onça que perseguia um furão para o almoço, perto da famosa cachoeira do Véu da Noiva. Passou como um raio e desapareceu na mata tão depressa quanto surgiu.

As onças tiveram o reinado comprovado por um estudo com armadilhas fotográficas. E não só na mata que pouco a pouco engole o velho hotel. Mas em todo o Parque Nacional do Itatiaia, afirma o autor do estudo, o biólogo Izar Aximoff, especialista em gestão da biodiversidade e um dos pesquisadores com maior número de boletins científicos sobre o parque.

Com autorização do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), ele teve apoio de campo do artista plástico e conservacionista Christian Spencer, voluntário do PNI e profundo conhecedor da região. Flagraram mais onças do que poderiam imaginar.

- Podemos dizer que este é o paraíso das onças no Estado do Rio. Para sabermos o tamanho exato da população delas aqui, porém, seria preciso fazer um estudo mais longo, com acompanhamento dos animais. Mas sabemos que são muitas, e isso é um sinal de vitalidade da Mata Atlântica na região - explica Aximoff.


LEÕES-DA-MONTANHA NA NEVE TROPICAL

As onças vão aonde a comida está. E o PNI, a despeito da pressão da caça ilegal, oferece uma diversidade de animais, como catetos (porcos-do-mato), pacas e tatus, todos no cardápio do felino. Uma boa notícia sobre o estado de conservação do parque, o mais antigo do Brasil e, possivelmente, onde está a mais rica fauna de mamíferos do Estado do Rio.

Também conhecida como suçuarana ou leão-da-montanha, a onça-parda (Puma concolor) é o segundo maior carnívoro do país. O primeiro é a mais rara onça-pintada (Panthera onca). Esta é uma nômade que precisa de imensos territórios - coisa na casa de cem quilômetros quadrados - e para a qual o PNI, segundo relatos, é um ponto de passagem. Ainda pouco se sabe sobre a pintada por lá.

O nome leão-da-montanha, mais comum nos Estados Unidos do que no Brasil para o Puma concolor, é perfeito para as onças do PNI. As florestas sobem por encostas íngremes e os dotes de escaladora da espécie explicam muito do seu sucesso em caçadas.

Conhecida como predadora, a onça-parda tem apenas um inimigo natural, o ser humano. Embora a neurociência diga que o bicho-homem tem mais medo de felinos selvagens do que de qualquer outra coisa, isso parece ser coisa relegada a nosso passado nas savanas.

Caçadores ilegais levaram as onças à miséria populacional em muitas partes do país. Eles são uma pestilência constante, mesmo dentro de um parque nacional. Acossadas, as onças sofrem ainda com a perda de habitat. Na era dos homens, o Antropoceno, essa é sua principal ameaça em todo o Brasil, adverte o coordenador do Centro Nacional de Mamíferos Carnívoros, Ronaldo Morato:

- A onça é refém da perda de habitat.

A senhora da floresta teme apenas o homem. Não há um só caso conhecido de ataque de onças-pardas a pessoas nessa região. Mas, claro, elas impõem o respeito que suas garras e dentes merecem. Aximoff lembra o relato de um amigo pesquisador que correu por quilômetros mata afora após ouvir uma onça e sentir sua presença próxima.

Diferentemente da pintada, a parda não ruge nem esturra (rosna). Sua voz é mais parecida com um miado - mas amplificado, proporcional ao seu tamanho e à sua potência.

O guia de montanha e escalador Igor Spanner, morador de Resende e conhecedor do parque, recorda o relato do pai, Júlio, um dos guias mais conhecidos e experientes da região, sobre uma visão épica. Durante a histórica nevasca nas Agulhas Negras (parte alta do PNI) em 1985, Júlio e amigos deram de cara com duas onças no Abrigo Massena, uma construção de apoio a trilheiros, enquanto buscavam uma dupla de montanhistas desaparecida na tempestade. Um privilégio. Encontrar um casal de leões-da-montanha na neve num país tropical é uma experiência para poucos habitantes da Terra.

- As onças foram embora assim que viram meu pai e os amigos. Uma pena - conta Spanner.

A onça, sempre que pode, evita o ser humano. Mas usa as trilhas para caçar. É mais fácil perseguir presas rápidas ali do que na mata fechada. Por isso, as onças parecem realmente gostar das trilhas, segundo pesquisadores.

- Elas se acostumaram e adaptaram aos caminhos humanos. Já vimos uma onça com dois filhotes na trilha. E talvez seja por isso que os outros animais evitam as trilhas, principalmente nas noites de Lua cheia - afirma Aximoff, que com Spencer e Sérgio Maia Vaz também assina um estudo sobre os mamíferos de grande e médio porte no PNI.

Como outros especialistas em conservação, ele espera que o conhecimento sobre esses animais aumente.

- No atual estágio de conhecimento, não é possível dizer se elas (onças) se tornaram mais comuns agora, em fuga de áreas mais impactadas pelo homem, ou se sempre foram frequentes. O que sabemos é que esse é um animal magnífico que precisa da nossa proteção - destaca Aximoff.


Lobo domina montanhas e vales frios do trópico

O lobo gosta da Lua cheia, contam lendas mundo afora. E não é diferente nas noites sempre frias, faça inverno, faça verão, dos campos de altitude do Itatiaia. Embora o leão-da-montanha vez por outra se aventure nesse território de clima hostil, ar rarefeito e vegetação guerreira, ali quem domina é o lobo brasileiro.

O teto do Estado do Rio é o território do lobo-guará (Chrysocyon brachyurus). Ele dá vida à lenda e saúda a Lua. Mas não uiva. Percorre os campos elegante e altivo ao luar, quando se torna mais visível, crina ao vento, que sopra sempre por lá.

- O guará tem um jeito amistoso, nunca parece ameaçador. Mas sua voz atravessa a noite, dá uma sensação estranha. Causa certo desconforto. Não uiva. Late. Não é o latido de qualquer cachorro. É um latido longo, profundo. Ecoa pelas montanhas. Assusta - diz o montanhista César Caffé.

Guia de montanha de dia e um dos guardas do Parque Nacional do Itatiaia (PNI) à noite, Caffé está entre as pessoas que mais viram lobos-guarás lá. Até selfie já tirou com um. Em seus plantões, que começam às 19h e só terminam às 7h do dia seguinte, já encontrou incontáveis vezes o lobo.

- Não dá para identificar indivíduos, mas sabemos que há pelo menos uma família com filhotes. São lindos. E estão mesmo mais frequentes agora - afirma.

REFUGIADOS DA DESTRUIÇÃO DO CERRADO

Com aparência de cachorrões de rabo felpudo, eles reviram latas de lixo do posto da guarda do PNI e do Abrigo Rebouças, em busca de restos de comida. O lobo-guará, como o ser humano, come de tudo. Seu cardápio na natureza inclui pequenos mamíferos e plantas - a lobeira, o nome indica, é seu prato favorito. Mas, oportunista, não dispensa pedaços de sanduíches ou restos em panelas de pessoas acampadas no parque.

- Eles vêm todos os dias. Costumam chegar depois das 20h. Quase sempre sobem a estrada da Garganta do Registro. Mas já foram vistos em outras trilhas também - diz Caffé.

O mesmo estudo com armadilhas fotográficas realizado por Izar Aximoff sugere que o guará realmente está cada vez mais comum na parte alta do Parque Nacional do Itatiaia. É uma região acima dos dois mil metros - píncaros para as baixas altitudes predominantes no Brasil -, totalmente distinta da parte baixa, onde predominam as florestas.

Os campos do Itatiaia são uma terra de gigantes, dominada pelas Agulhas Negras (2.791 metros), o quinto mais alto cume do Brasil. Terra de altas montanhas e vales de nascentes cristalinas e gélidas, coalhados de pedras de todos os tamanhos e formas. No meio delas, não raro se vê o guará. Os guardas do PNI, como Caffé, perderam a conta do número de vezes em que avistaram lobos. Montanhistas também.

- No inverno do ano passado, me deparei com um, mas ele se assustou e fugiu. Meu pai também viu algumas vezes. Ele os observava às vezes nos anos 70. Os lobos tinham sumido um pouco, mas agora estão mais comuns aqui no Planalto do Itatiaia - observa Igor Spanner.

Por trás dos lobos vermelhos que encantam os frequentadores da parte alta do PNI, pode haver uma história sombria.

- O lobo sempre existiu nesses campos. Mas há indícios de que está de fato mais comum. Uma hipótese para isso é que esteja em fuga da destruição do Cerrado, em busca de novos habitats - explica Izar Aximoff.

O Cerrado, habitat preferido do lobo-guará, continua a ser devastado para dar lugar a plantações em estados no Centro-Oeste e Minas Gerais.

- Por outro lado, vemos também a degradação da Mata Atlântica. Aqui no PNI, os campos são nativos, mas o guará chega também a outros pontos, onde a floresta derrubada deu lugar à vegetação rasteira - acrescenta o pesquisador.

O coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap), Ronaldo Morato, tem a mesma opinião. Ele salienta que estudos já mostraram que a destruição do Cerrado expulsa os lobos. Os animais chegam a regiões de Mata Atlântica, mas ali não encontram um habitat ideal, pois não há abrigo. Nisso, os campos de altitude do Itatiaia são exceção.

- É uma espécie ameaçada, pressionada pela perda de habitat - frisa Morato.

No Itatiaia, o ambiente que acolhe o lobo está em permanente mutação. De dia, sob o sol intenso e a elevada radiação da montanha, o guará prefere se recolher. Mesmo no inverno, pode esquentar. Mas, à medida que a luz baixa, a temperatura despenca. E as montanhas cinzentas ficam douradas.

Toda noite, mesmo as mais frias, é noite de vaga-lumes - uma espécie nova foi descoberta recentemente lá. A chuva é frequente. Nessa altitude, nuvens sobem em vez de descer. Elas se condensam nas florestas abaixo e ascendem para os campos. Precipitam-se e param. Raios, literalmente, quebram rochas. E silenciam.

À medida que a noite avança, o frio acentuado pela altitude pode chegar a 13 graus negativos, medidos em julho deste ano na estação meteorológica doada pelo grupo Brasil Abaixo de Zero à parte alta do PNI e aos cuidados de Caffé.

Frio de encarangar cusco, como se diz no Sul em alusão ao enrodilhar dos cachorros que buscam se aquecer. Mas nada que intimide o guará, que parece um cachorro doméstico grande, mas tem resistência selvagem. É nessas horas frias que ele surge. Percorre campos e trilhas em busca de comida. Não faz barulho e é revelado apenas pelo brilho dos olhos.

Numa noite de janeiro de 2015, o fotógrafo e montanhista Germano Viegas teve um encontro com um lobo na estrada, a caminho do Abrigo Rebouças:

- Era quase meia-noite. Vi os olhos brilhando na escuridão. Não dá exatamente medo. Mas é um animal selvagem, você fica apreensivo. Ele, porém, é muito arredio.

E, como na canção de Zé Ramalho - "Mistérios da meia-noite/ que voam longe/ que você nunca/ não sabe nunca/ se vão se ficam" -, o lobo desapareceu.


O último refúgio de uma flor

O cinza das montanhas contrasta com o intenso colorido das quase 500 espécies de plantas dos campos de altitude do Parque Nacional do Itatiaia (PNI). Vermelho, roxo, rosa, amarelo, azul, lilás, há todo o arco-íris e muito mais. Flores são vistas o ano todo, numa região dominada por espécies da família das margaridas. Mas é uma espécie de outra família que tem despertado a atenção de cientistas. Pequenina, delicada e com tonalidade entre o azul e o lilás, ela praticamente se despediu deste mundo. Chama-se Hindsia glabra e vive apenas junto aos brejos e alagadiços.

- Ela está restrita a Itatiaia e, por haver poucos indivíduos, está quase extinta. A minha ideia é realizar em breve um reforço populacional da espécie, produzir mudas e espalhar pelos campos - diz Izar Aximoff, cuja tese de doutorado realizada no Jardim Botânico do Rio investiga o impacto do fogo sobre os campos.

Os incêndios, quase sempre intencionais, são a maior ameaça não apenas à Hindsia glabra, mas a todas as plantas dos campos de altitude. Segundo Aximoff, coautor do "Guia de plantas do Planalto de Itatiaia", essa espécie já foi comum. Mas hoje precisa de ajuda para continuar a existir. É encontrada apenas junto a brejos e alagadiços distantes das trilhas e de acesso mais difícil. Outra que buscou refúgio em pontos isolados é a roxa Barbacenia gouneleana, que, devido à raridade, não tem sequer nome popular.

A história da florzinha quase extinta ilustra bem a riqueza do PNI. Fundado em 1937, ele é o mais antigo parque do Brasil. Embora tenha sido muito estudado, ainda revela surpresas, e a descoberta de novas espécies não é excepcional. Situado entre Rio e Minas Gerais, perto da fronteira com São Paulo, o PNI abriga alguns dos mais preservados quinhões da Serra da Mantiqueira. São matas guardiãs de diversidade e de rios. Nascem lá alguns dos mais importantes afluentes do Paraíba do Sul, como o Rio Campo Belo.

O PNI é um dos últimos refúgios no país da Mata Atlântica como ela era em seu apogeu, a chamada mata primária. Com 291,56 quilômetros quadrados, o parque é divido entre a parte baixa, com florestas, e a alta, acima dos dois mil metros. Nesta, conhecida como Planalto do Itatiaia, há campos de altitude e montanhas famosas, como as Agulhas Negras (2.791 metros) e as Prateleiras (2.548 metros).

A diversidade de ambientes se reflete na fauna e flora. Exemplo disso são, além de onças e lobos, a presença de praticamente todas as espécies de mamíferos de médio e pequeno porte da Mata Atlântica, como o raríssimo muriqui-do-norte (o maior macaco das Américas), o bugio-ruivo, o tamanduá-bandeira, a irara, o queixada e a jaguatirica.



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